segunda-feira, 3 de março de 2008

O Brasil pós-golpe

Carlos Lacerda à esquerda do presidente general Humberto Castelo Branco, provavelmente no Palácio Guanabara. Julho de 1964. No dia 1º de abril de 1964, Jango deixava Brasília rumo a Porto Alegre e, em seguida, ao exílio no Uruguai, assumindo o governo, em caráter provisório e de acordo com a fórmula constitucional, Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. No entanto, o poder de fato passou a ser exercido por uma junta governativa formada pelos três ministros militares — o general Artur da Costa e Silva, da Guerra, o vice-almirante Augusto Rademaker Grünewald, da Marinha e o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, da Aeronáutica.

Leitura do Ato Institucional nº 1, em 08 de abril de 1964. Se auto-proclamando membros do Supremo Comando Revolucionário a junta promulga, no dia 9 de abril, o Ato Institucional n° 1, mudando as regras do jogo democrático. Esse ato conferia ao Executivo cobertura legal para a cassação de mandatos e a suspensão dos direitos políticos de parlamentares, políticos, intelectuais, diplomatas e membros das Forças Aramadas, além de garantir poder para declarar o estado de sítio, podendo prorrogá-lo por 30 dias, sem prévia autorização do Congresso.

No dia seguinte, o general Humberto Castelo Branco é eleito pelo Congresso presidente da República. Castelo Branco, militar da linha moderada do Exército, muito próximo aos EUA, foi um dos principais articuladores da conspiração militar contra Jango e gozava de grande prestígio junto aos oficiais da ativa. O novo governo congregará políticos conservadores da União Democrática Nacional (UDN) e tecnocratas, além de militares.

Esq p/dir: ministro do Exército, general Artur da Costa e Silva, ministro da Marinha, Almirante Augusto Rademaker e ministro da Aeronáutica, brigadeiro Francisco Correia e Melo, assinando o Ato Institucional nº1 (AI-1). 09 de abril de 1964.Do ponto de vista político, era preciso definir a nova base de sustentação do governo. O apoio dado pelas classes médias, logo após a deflagração do golpe, começava a ser minado não só pelas medidas repressivas tomadas pelo novo governo, mas sobretudo pelo caráter impopular do programa de estabilização econômica levado a cabo por Roberto Campos e Otávio Bulhões, respectivamente ministros do Planejamento e da Fazenda. Tanto isso é verdade que, em outubro de 1965, a oposição consegue sair vitoriosa das eleições para os governos de dois importantes estados, Minas Gerais e Guanabara. Em represália, o governo promulga, ainda em outubro, o Ato Institucional n° 2 que, entre outras medidas de exceção, dissolve todos os partidos políticos e estabelece eleições indiretas para presidente da República e governadores. No final de novembro são definidas as regras a serem seguidas na reorganização partidária, que deram origem à instalação do bipartidarismo no país: de um lado, a agremiação governista Aliança Renovadora Nacional (Arena) e, de outro, o oposicionista Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Livros ¨subversivos¨ apreendidos pelos militares são expostos a estudantes secundaristas. Maio de 1964.Do ponto de vista econômico, o governo Castelo Branco desenvolveu uma rígida política antiinflacionária, necessária para cumprir a agenda de compromissos financeiros internacionais do país. A impopularidade advinda da política econômica e das medidas repressivas do governo, atingindo inclusive políticos que haviam apoiado a conspiração e o golpe militar, aprofunda a crise política e conduz Castelo Branco a um fechamento cada vez maior do regime. Em outubro de 1966, sob o protesto do MDB, o Congresso elegeu o general Artur da Costa e Silva para substituir Castelo Branco na presidência da República.

A vitória de Costa e Silva, candidato da facção militar conhecida como "linha dura", desencadeou um processo de endurecimento político do regime. O novo presidente assume o poder em março de 1967 constituindo um ministério quase que absolutamente militar, do qual participaram quatro representantes da "linha dura", entre eles o general Garrastazu Médici, chefe do Serviço Nacional de Informações, que viria a ocupar a presidência da República entre 1969 e 1974.

A orientação tomada pelo novo governo na economia e na área de educação gerou uma crescente insatisfação em amplos setores da sociedade, particularmente no movimento estudantil, que chega ao ápice, em março de 1968, com a morte de um estudante no Rio de Janeiro. O episódio provocou uma série de manifestações nas principais cidades do país, entre abril e junho, culminando com a famosa "Passeata dos Cem Mil", nas ruas do centro do Rio.

O clima de radicalização política, agravado pelo discurso do deputado Márcio Moreira Alves, denunciando as arbitrariedades do regime, em setembro de 1968, levou o governo a encaminhar o pedido de cassação de seus direitos políticos ao Supremo Tribunal Federal. Em face da recusa da Câmara, em 12 de dezembro, em conceder a licença necessária para processar o deputado, o governo baixou, no dia seguinte, o Ato Institucional n° 5. Entre outras medidas, o AI-5 autorizava o presidente da República, independente de qualquer apreciação judicial, a intervir nos estados e municípios sem as limitações previstas na Constituição, a cassar mandatos eletivos e a suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão, e a suspender a garantia de habeas-corpus.. Concomitantemente, foi editado o Ato Complementar nº 38, decretando o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado.

Célia Maria Leite Costa


Articulação da Oposição - a Frente Ampla

Movimento político lançado em 28 de outubro de 1966 com o objetivo de lutar pela "restauração do regime democrático" no Brasil, a Frente Ampla teve como principal articulador o ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e contou com a participação dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, e de seus correligionários.

Um dos mais destacados líderes civis do golpe militar que depôs Goulart em 31 de março de 1964, Lacerda foi sendo aos poucos alijado do centro das decisões. Em outubro de 1965 sofreu uma derrota importante: Carlos Flexa Ribeiro, seu secretário de Educação, foi derrotado por Francisco Negrão de Lima na disputa pelo governo da Guanabara. No final do mês, o regime militar se consolidou com a edição do Ato Institucional nº 2, que, entre outras medidas, suprimiu as eleições diretas para a presidência da República, frustrando as pretensões de alguns civis, entre os quais o próprio Lacerda.

Lacerda tentou, sem êxito, estruturar um novo partido, uma vez que a grande maioria do seu partido, a União Democrática Nacional (UDN), principal base de apoio do governo no Congresso, ingressou no novo partido situacionista, a Aliança Renovadora Nacional (Arena). Confirmando seu afastamento dos militares, os deputados da Guanabara fiéis à orientação de Lacerda ingressaram no oposicionista Movimento Democrático Brasileiro (MDB), em julho de 1966.

Em setembro, a imprensa referia-se à formação de uma frente política — batizada de Frente Ampla — reunindo Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, e seus correligionários. As negociações de Lacerda com Juscelino, cassado em junho de 1964 e exilado em Lisboa, encaminhadas pelo deputado do MDB Renato Archer, avançavam com relativa facilidade, mas com Goulart, desenvolvidas por intermédio do emedebista Armindo Doutel de Andrade, mostravam-se mais difíceis. Cassado pelos militares logo após o golpe, Goulart vivia em Montevidéu.

O mês de outubro foi marcado pela eleição, no dia 3, pelo Congresso, do marechal Artur da Costa e Silva à presidência da República, e por uma grave crise entre o Executivo e o Legislativo, provocada pela cassação de seis parlamentares em 12 de outubro, entre eles Doutel de Andrade. O arenista Adauto Lúcio Cardoso, presidente da Câmara dos Deputados, reagiu, afirmando que a decisão sobre as cassações de mandatos era competência da Câmara. Em represália, o governo mandou prender Doutel, e fechou o Congresso no dia 21.

A Frente Ampla foi finalmente lançada em 28 de outubro de 1966, através de um manifesto dirigido ao povo brasileiro e publicado no jornal carioca Tribuna da Imprensa. Assinado apenas por Carlos Lacerda, o documento defendia eleições livres e diretas, a reforma partidária e institucional, a retomada do desenvolvimento econômico e a adoção de uma política externa soberana. Apesar de não ter sido firmado por Goulart e Kubitschek, o manifesto confirmava as negociações entre eles e Lacerda.

Em 19 de novembro de 1966, Lacerda e Kubitschek emitiram a Declaração de Lisboa, na qual afirmavam terem superado as divergências e estarem dispostos a trabalhar juntos numa frente ampla de oposição ao regime militar. Formalizada a aliança Lacerda-Juscelino, impunha-se a obtenção de um compromisso de Goulart. Lacerda admitia que o movimento não ganharia amplitude sem a inclusão da componente popular representada pelos partidários do ex-presidente e pelos sindicatos.

Em maio de 1967, em discurso na Câmara dos Deputados, Renato Archer declarou que a Frente Ampla entraria em recesso por 90 dias, na expectativa de uma melhor definição do recém-instalado governo do marechal Costa e Silva. No período que se seguiu, diluíram-se os apoios da bancada do MDB. No final de agosto, reiterando o agravamento das relações da Frente com o governo, o ministro da Justiça, Gama e Silva, proibiu a presença de Lacerda na televisão. Foi nessa conjuntura de tensão que Archer foi designado secretário-geral da Frente Ampla.

Os contatos com Goulart, mantidos através do deputado Osvaldo Lima Filho e de José Gomes Talarico, evoluíam. No final de setembro, mais de dez meses depois da Declaração de Lisboa, Lacerda firmou em Montevidéu uma nota conjunta com Goulart, na qual a Frente Ampla era caracterizada como um "instrumento capaz de atender... ao anseio popular pela restauração das liberdades públicas e individuais".

Depois da entrada de Goulart, e graças também à maior aceitação por parte dos parlamentares do MDB, deu-se início a mobilizações públicas, com comícios nas cidades paulistas de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, em dezembro de 1967, e em Londrina e Maringá, no Paraná, no início de abril de 1968. Esses últimos eventos, reunindo mais de 15 mil pessoas, coincidiram com as manifestações estudantis realizadas em todo o país em repúdio à violência policial que, no Rio de Janeiro, causara a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto no final de março.

No dia 5 de abril, por intermédio da Portaria nº 117 do Ministério da Justiça, todas as atividades da Frente Ampla foram proibidas.

Sérgio Lamarão

Exílio no Uruguai: Doença e morte de João Goulart

João Goulart no exílio em Montevidéu, entre 1967 e 1976 Após rápida passagem por Porto Alegre, onde encontrou seu cunhado Leonel Brizola, o ex-governador do Rio Grande do Sul e então deputado federal pelo PTB da Guanabara, João Goulart decidiu partir para o exílio, chegando a Montevidéu no dia 4 de abril de 1964. No Uruguai, recebeu diversas manifestações de solidariedade do Brasil e do exterior, principalmente vindas de países da América Latina, entre os quais Chile, Argentina e Uruguai.

João Goulart no exílio em Montevidéu, entre 1967 e 1976Durante seu período de exílio, o ex-presidente se correspondeu com vários políticos, mantendo-se informado sobre a conjuntura política do país e sobre as medidas de exceção tomadas pelos militares logo após o golpe. Parte da correspondência com um desses políticos, Doutel de Andrade, refere-se ao Inquérito Policial Militar (IPM) a que Goulart foi submetido e que resultou em seu indiciamento como principal responsável pelos crimes arrolados no processo, em 1969. A sindicância desenvolvida pelo regime militar, iniciada ainda em 1964, visava a averiguar possíveis irregularidades em seu patrimônio material. O processo, com 19 volumes de documentos, concluiu que o ex-presidente havia cometido crimes contra o Estado e a ordem política e social, tais como "corrupção administrativa; aplicação indevida do dinheiro público; concessão de vantagens, favores e privilégios a apadrinhados e a organizações de classe que (...) conturbavam a vida nacional (...); diluição do princípio de autoridade e solapamento das instituições" (JG e 1969.06.02).

João Goulart sendo fotografado por sua esposa, Maria Tereza, em sua fazenda, em abril de 1964. Em uma das cartas enviadas a Doutel, em 4 de maio de 1964, logo nos primeiros tempos do exílio, Goulart revela que "com profunda mágoa, tomo conhecimento da opressão, injustiças e violências praticadas contra o povo e contra as pessoas que cometeram o único crime de serem meus amigos ou de apoiarem minha orientação, que entendiam certa para os destinos do país". Mais adiante, nessa mesma correspondência, referindo-se a uma matéria publicada por um jornal de Porto Alegre relativa ao seu patrimônio, afirma que se sentia no dever de "enviar alguns rápidos esclarecimentos (...) que servem para desmascarar a miséria moral do seu autor". Em seguida, fornece informações detalhadas sobre a origem dos seus bens, segundo ele, todos adquiridos até 1961, ano em que assumiu a presidência da República. Afirma ainda que algumas das propriedades em Mato Grosso, a ele atribuídas pelo jornal, nunca constaram do seu patrimônio e conclui solicitando que todos os dados fornecidos fossem publicados, se possível, como matéria paga (JG e 1964.04.04/2).

Nesses cinco anos de investigações e acusações, sem poder usar o direito de defesa e sem que seus advogados tivessem acesso aos autos, Goulart se deprime, adoece e envelhece precocemente, como demonstram alguns dos documentos encontrados no seu arquivo pessoal, inclusive fotografias. Em correspondência dirigida a um deputado estadual do Rio Grande do Sul, em agosto de 1964, comenta seu estado de saúde, dizendo que já se encontra em fase de recuperação e que já retomou a leitura dos "jornais da terra" (JG e 1964.04.04/12). A referência feita diz respeito às complicações cardíacas que surgiram nesse período e que o perseguiram até a sua morte em 1976.

Nesses 12 anos, concedeu várias entrevistas a jornalistas brasileiros e estrangeiros e recebeu relatórios semanais de ex-colaboradores, como José Gomes Talarico, com informações sobre a conjuntura política e a atuação dos militares e dos políticos, inclusive da oposição. Entre 1966 e 1968, tomou parte das articulações relativas à constituição da Frente Ampla, movimento que visava à restauração democrática do país, por meios pacíficos, e do qual também participaram Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek.

Jango passou a residir em Buenos Aires em 1973, a convite do então presidente Juan Domingo Perón. Faleceu na sua fazenda La Villa, no município argentino de Mercedes, vítima de um ataque cardíaco, sem ter conseguido regressar ao Brasil. Sua morte teve grande repercussão tanto no Uruguai como no Brasil, a despeito da censura imposta ao noticiário relativo ao fato. Goulart foi sepultado em sua cidade natal, São Borja. O cortejo foi acompanhado por cerca de 30 mil pessoas, entre as quais políticos oposicionistas e antigos colaboradores de seu governo.

Célia Maria Leite Costa